Pt.2 - As vozes.


Deixa eu te contar uma história primeiro. De início, eram só vozes diferentes em momentos diferentes chamando meu nome, gritando na verdade... mas quando eu olhava pros lados, não havia ninguém, nunca... e nunca era a mesma voz, algumas vezes, a mesma... mas sempre mudava. Eu cheguei a comentar com meu pai quando começou a acontecer, eu era criança ainda... mas ele achou que não fosse nada, na verdade eu também nem liguei muito, só que me ficou na cabeça, é claro... não era muito normal isso. E meu pai provavelmente pensou que fosse coisa de criança, o que óbviamente qualquer adulto pensaria, tirando eu hoje em dia, mas enfim... Me lembro de uma vez que aconteceu à noite, me lembro do exato lugar, toda vez que passo por lá me lembro, principalmente à noite quando estou sozinha... fico parada lá e a lembrança desse acontecimento vem à tona como se estivesse acontecendo de novo na minha frente, como em um filme, enfim... Estávamos voltando de algum lugar, indo pra casa, estávamos de mãos dadas, quando eu ouvi essa voz gritando meu nome, como alguém desesperado correndo pra te alcançar que te grita, então eu parei, olhei pra trás e disse "Oi?...". Essa não foi a primeira vez que aconteceu, mas foi uma das primeiras. Meu pai apertou minha mão, eu olhei pra ele e perguntei "Você não ouviu? Alguém me chamou... só que não tem ninguém.", e ele quase que de imediato me puxou forte pela mão, sem olhar pra trás e disse "Não olha pra trás. Nunca mais olha pra trás, muito menos responda, Okay??", e eu "Mas pai, eu ouvi..." e ele "Não. Me prometa!" então eu prometi... mas não cumpri. Não entendi muito bem... passei a noite em claro, mas não por causa da voz, e sim por causa da reação do meu pai... pensei: "Será que ele ouviu? Será que ele também ouve? O que é essa voz que me chama mas quando olho, não tem ninguém? Ou será que eu sou maluca, e ele simplesmente por não ouvir nada, e devido à minha convicção, me acha maluca por ouvir e responder?", nunca obtive a resposta pra essas perguntas... esses assuntos nunca eram comentados, ele ficava bravo quando eu falava nisso, ficava com aquele nervo na cabeça vermelho como se fosse explodir e ia pra outro lugar. Ainda me pergunto se ele ficava assim por não querer que sua filha seja uma lunática, ou porque... ele também podia ouvir... ou pior, sabia algo sobre isso e não queria me contar... talvez pra que não o achassem maluco também, enfim... nunca terei as respostas pra essas perguntas, só as perguntas mesmo. Bom, como eu disse, eu não cumpri a promessa... eu sempre olhei quando ouvia chamarem meu nome, muitas vezes respondia, principalmente quando acontecia dentro de casa, mesmo quando eu estava sozinha e sabia disso... eu fingia achar que era meu pai ou minha mãe e andava pela casa procurando. Claro, nunca achei nada... Com o tempo a freqüência aumentou, acontecia quase todos os dias, depois todos os dias, depois várias vezes todos os dias, até que eu parei de procurar, mas não de responder... só que aí eu já não era como antes, eu perguntava, muitas vezes gritando, "O que você quer? Me deixa em paz!". Depois, as coisas foram ficando cada vez mais estranhas... eu acordava com arranhões (provavelmente de me debater durante o sono), assustada, e sempre tinha algo fora do lugar. A primeira coisa em que pensei foi que estava ficando louca e que provavelmente estava sofrendo de sonambulismo. Cheguei, um dia, a pegar emprestado a câmera filmadora da minha tia e colocar na frente da minha cama, ligada e virada pra mim, antes de dormir, mas nunca acontecia nada. Até que um dia acordei assustada, ouvi um barulho na cozinha e fui ver, levando a câmera comigo, mas não havia nada... já era quase 05:00am então eu voltei a fita pra assistir. Não havia nada de estranho nela também, eu não havia movido um músculo enquanto dormia, só quando acordei de repente. Quando minha mãe acordou, ela me perguntou quem havia mexido no armário, e eu sabia que não tinha sido eu, mas também não foi mais ninguém na casa... Mas isso de nada importou, nem mesmo pra mim. Mesmo sendo criança, queria respostas... não conforto ou respostas evasivas de meus pais, mas sim respostas lógicas, racionais. Então fui à procura disso, e nenhum lugar melhor do que a biblioteca e todo seu acervo de livros e silêncio. Foi quando comecei a ler tanto sobre Psicologia e Neurologia, quanto sobre o Oculto. Nos livros que li, vi várias respostas... o que me levou à um desejo por uma busca mais à fundo... ler não era suficiente, li, estudei, pesquisei sobre tudo isso, queria entender tudo o que acontecia e não acontecia, pra que quando acontecesse eu tivesse algo a me dizer. É claro que vários distúrbios psicológicos me vieram à cabeça. Dois em especial, e mais um distúrbio psicológico diferente, que não era causado pelo ambiente, ou seja, por tudo que já vi, ouvi, li, enfim, pelo meio em que vivi e tudo que havia aprendido e acontecido comigo. Mas sim um genético, passado de... pai pra filha, por exemplo, que causava coisas que haviam acontecido comigo, e me davam até uma explicação razoável para o comportamento do meu pai em relação à isso - assunto que trouxe à tona certa vez e causou uma discussão sem argumentos da outra parte, e me fez ouvir mais uma vez aquelas palavras, "Eu não quero ouvir mais nada sobre isso, esse assunto acaba aqui e agora.". Quanto ao oculto, entrei cada vez mais fundo também, inclusive, para entender melhor certos aspectos de situações vivenciadas por mim anos antes, me tornei membro de um grupo de seguidores de Wicca de São Paulo, me correspondendo com eles pelo correio, inclusive com a autora de vários livros sobre Wicca que li, ela lia minhas cartas e respondia atenciosamente, como quem realmente se interessava e queria ajudar. Depois disso, tive várias experiências que hoje só podem ser "explicadas" como paranormais, algumas provocadas por mim, outras naturais. Coisas às quais eu até então não dava atenção alguma, que pra mim até então não tinham ligação alguma, mas depois juntando todas, tudo fazia algum sentido. E admito, seguir o oculto era mais fácil do que acreditar que eu tinha algum problema mental, como pensava (e ainda pensa) minha mãe e sua família. A mulher com quem eu me correspondia, autora dos livros, me disse pra não ignorar as vozes, perguntar o que elas queriam, se eu podia ajudar ou coisa assim. Devia pensar que era algum tipo de manifestação sobrenatural ou um Poltergeist . Disse à ela que nada acontecia, então ela só pôde me aconselhar a não ignora-las. E não ignorei. Depois de um tempo, cheguei até a pensar que era mesmo coisa da minha cabeça, ou minha consciência, até que as coisas mudaram. Não chamavam mais pelo meu nome, me diziam por onde ir, o que dizer e não dizer, e eu muitas vezes aceitava. Cheguei a achar que era um tipo de manifestação de meus instintos, por eu ser mais aberta à fenômenos paranormais e coisas que a razão não explica, por acreditar, pois elas me diziam pra não pegar tal rua, pra ir por tal lugar, quando ao mesmo tempo eu tinha a exata sensação de que realmente não deveria ir por tal lugar. Já havia lido sobre isso, e é bem comum. Mas o que era comum se tornou maior e mais forte, ao ponto de eu me fechar em um mundo só meu, era um mundo melhor. Ouvir as vozes sem rostos era melhor do que ouvir as pessoas. As vozes não mentiam, não me faziam sentir-me mal. Eu nunca confiei em ninguém além das vozes, sabia quando as pessoas estavam mentindo e quando queriam me enganar, me fazer mal, e depois de um tempo não precisava mais das vozes pra me dizerem isso, não que elas tenham ido embora, elas nunca me deixaram. Anos se passaram e eu acabei saindo desse mundo pra tentar me encaixar nesse mundo que chamam de vida real, passei a fingir que não haviam vozes e tentei confiar nas pessoas. As vozes me diziam que eu iria me arrepender disso, porque todos iriam me trair e me abandonar. Pois bem, aconteceu exatamente assim, só que não me arrependo de ter tentado confiar nas pessoas, de me aproximar, de ouvir vozes com rostos, mesmo tendo sido tão traída por esses rostos. Pelo menos posso dizer que tentei. E como tentei, tentei durante anos, muitas pessoas passaram por minha vida, mas uma coisa não mudou desde as primeiras... a dificuldade em confiar. Ela só cresceu, hoje em dia tenho extrema dificuldade até mesmo em dizer um simples "Oi.". Ah, claro, não foi tão simples assim...digamos que, legalmente, sou considerada insana. Tenho um atestado comprovando isso, graças à um psiquiatra que tive que ir à força, pois cheguei a ser internada pra tratar o "meu problema mental/psicológico" (o psiquiatra e os psicólogos nunca chegaram à uma conclusão exata, cada um quis me tratar de um transtorno diferente). Costumo dizer brincando que passei parte da vida dopada, quando me perguntam sobre certas coisas, dizia "Não sei, devia estar fora do ar nessa época." Foram tempos difíceis, costumo dizer que nasci com 11 anos e à partir daí passei os próximos 5 anos dopada. Não é de todo mentira, afinal, realmente passei essa época dopada. Porém, foi nessa mesma época que não escutei as vozes e saí do meu mundinho pra viver um pouco aqui fora, coisas das quais não me arrependo, aprendi muito com isso. Devo acrescentar que hoje rio disso com as vozes. É, elas continuam comigo... quando digo 'brincando', como disse pra D., "Cuidado, senão "as vozes" vão te ouvir...", não é de todo brincadeira... são vozes, muitas vezes diferentes, sem nomes, sem face... são parte de mim, são eu mesma dividida em partes, com grande conhecimento das coisas da vida, até daquelas que nem experimentei. São aquela sensação constante de Déjà Vu, meus instintos que me guiam nas ruas escuras e solitárias da vida, o diabinho de um lado e o anjo do outro, meu melhor amigo, meu pior inimigo, minha doença mental, meus distúrbios/transtornos psicológicos, a minha insônia e o meu calmante, a curiosidade que me move como a gasolina move um carro, o travesseiro que se molha com as minhas lágrimas, o ouvido que surda com as minhas risadas, meu lado oculto... que eu posso contar pra todo o mundo e jamais será visto, continuará sendo o meu jardim secreto, onde ninguém, jamais foi e jamais irá. Elas são... eu.

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